Apenas um fruto

8 11 2013

Nota do autor: Certo dia, enquanto conversava com uma amiga, ela comentou da frustração que é passar anos trabalhando em algo para apenas ter perspectiva de resultados em um futuro muito distante. O comentário me deu um estalo e me levou a escrever a fábula que segue. O que começou como um simples “saber lidar com uma frustração” virou uma espécie de “lição pra vida” de mim pra mim mesmo. Espero que isso faça tanto sentido para você como fez (e faz) para mim.

APENAS UM FRUTO

Era uma vez um jovem que morava com sua família em uma pequena vila. José era seu nome. Aprendiz de carpinteiro. Heitor era o nome de seu pai. Hábil carpinteiro. Paulo era o nome de seu avô. Exímio carpinteiro. Cornélio era o nome de seu bisavô. Fugitivo de uma guerra na qual aprendeu carpintaria enquanto foi mantido em um campo de concentração.

Carpintaria era uma tradição para a família de José. Carpintaria era o legado que corria no seu sangue. Carpintaria o seu propósito de vida e de todos os seus descendentes. Ao menos, seria, se não fossem por aquelas malditas Manguejelas.

Manguejelas são pequenos frutos roxos que, quando maduros, ficam dourados e reluzem à luz do sol. Manguejelas lembram o formato de uma berinjela, mas quando abertas são doces como uma saborosa manga. Verdade seja dita, o fruto é delicioso e, enquanto muitos debatem se é uma fruta ou um legume, alguns seletos mercadores a vendem por preços elevadíssimos. Não se engane. A Manguejela não é encontrada na sua típica vendinha-da-feira-de-domingo. Manguejelas são raras e, por isso, usadas em refinados pratos autorais (mais conhecidos como “experiências gastronômicas”), receitas inusitadas e naquele sorvete que custa o olho da cara (mas é delicioso).

Diante da beleza e o sabor da Manguejela, era apenas natural que José tivesse ficado obcecado pelo fruto. Ninguém esperava que o cliente do Seu Heitor fosse pagar por aquela cadeira de madeira com uma Manguejela. A proposta era inusitada, mas o pagamento muito acima do valor do serviço prestado. Naquela noite, Dona Lica preparou um inesquecível prato de Manguejela grelhada com Javafinho frito. Seus olhos brilharam ao ver o marido e o filho gemendo de satisfação enquanto degustavam a obra.

Dona Lica, no entanto, sabia que era bem capaz de José demorar um bom tempo até comer seu próximo prato de Manguejela e quis agradar o filho lhe oferecendo as três sementes que estavam dentro do fruto. José ficou maravilhado ao imaginar que ele teria como criar inúmeras outras Manguejelas com aquelas minúsculas sementinhas que mais pareciam gergelim e as guardou com muito cuidado em um frasco.
A vida de um carpinteiro, no entanto, é muito exigente e ao longo dos anos seguintes José se tornou um ávido assistente de seu pai. Dia e noite os dois trabalharam até que filas se formavam para admirar os móveis e esculturas de madeira e requisitar novos. A vida era boa e nenhum dos três membros da família tinha do que reclamar – ao menos profissionalmente.

Certo dia, Seu Heitor pediu que José cumprisse uma encomenda para um cliente. José fez o que lhe foi solicitado: uma bela escultura de madeira. No entanto, o que era belo em termos técnicos e de acordo com todos os critérios definidos não surtiu o efeito desejado no seu pai, Heitor, ou no cliente. Algo estava ausente.

Foi então que um estalo ocorreu na mente de José. Ele percebeu que, por mais que tivesse se tornado em um excelente carpinteiro, a atividade desempenhada era automática. Não havia paixão. Não havia amor. Não havia emoção nas suas criações e por mais impecáveis que elas fossem, lhe faltava o sopro da vida. Nesse dia, José tomou uma decisão.

Uma mão segurava uma pequena mala enquanto a outra acenava para Seu Heitor e Dona Lica. José estava se despedindo e, embora a decisão não tivesse sido fácil, ele tinha certeza do que queria. Seus pais poderiam lhe oferecer toda a segurança do mundo, mas nunca a certeza da sua realização própria. Faltava aquele combustível na sua vida. Faltava aquela motivação para sorrir ao imaginar o dia de amanhã. José olhou para o pequeno frasco e sorriu.

Plantar Manguejelas apenas parecia fácil. Os cuidados indicados para o solo eram muitos e, com o pouco dinheiro que tinha, José apenas conseguiu comprar um minúsculo terreno no meio do nada. O solo não era favorável e muito menos o clima. Embora a vontade fosse forte, José resistiu e decidiu pesquisar o máximo possível antes de tomar uma atitude. Afinal, com apenas três sementes para gastar, qualquer erro poderia ser fatal. E ele definitivamente não queria voltar para seus pais com o rabo entre as pernas.

Finalmente, após meses, a data chegou. A meteorologia indicava um clima favorável, o solo já estava arado há meses e nutrido por causa de outras plantações. Afinal, nem só de Manguejelas vive o homem e José precisava comer. Por isso, o jovem precisou plantar tantas outras frutas, verduras e legumes que garantissem sua subsistência.

Ainda assim, qualquer estudioso de Manguejela sabia que sementes plantadas, sob as condições adequadas, demoravam em média oito anos para gerar algum fruto. Aliás, “algum” significava uma chance de 35% por causa da natureza frágil da Manguejela.

Tendo isso em mente, José plantou as sementes e foi paciente. Ao longo dos anos, o seu pequeno casebre e terreno foram crescendo em tamanho e fama. Mercadores viajantes visitavam a fazenda para conhecer o “garoto que largou tudo para plantar Manguejelas”. Jornalistas publicaram notícias e devotos enxergaram sinais divinos em situação. O comércio passou a florescer, pessoas se tornaram habituais na região e todo um ecossistema ganhou forma por causa das (futuras) Manguejelas de José.

Anos se passaram e José decidiu expandir o quarto de visitas – afinal, muitos viajantes se hospedavam nele. Com o dinheiro do aluguel, José decidiu abrir uma pousada. Chalés coloridos foram construídos. Uma sala de estar aqui. Alguns animais ali. Um empreendimento de sucesso.

Mais alguns verões e veio Myca, a fiel companheira de José. Invernos depois, Julla nasceu e o agito de seu riso infantil para os corredores do famoso “Manguejela Hotel Fazenda”. Curiosamente, no entanto, dez anos tinham sido contados, mas nenhuma Manguejela encontrada.

Certa manhã, Myca percebeu que Julla tropeçou em algo no quintal. Ao observar uma raiz saindo do chão, chamou José. O carpinteiro-por-formação puxou a raiz e apertou as pálpebras com força quando o pequeno fruto reluziu. Era uma Manguejela. A única sobrevivente de três sementes, mas a prova de que era sua determinação havia surtido resultado.

– Myca, amor. – José chamou a esposa.

– Sim?

– Tome isso. Hoje o jantar vai ser diferente de qualquer coisa que você já comeu.

– Uma Manguejela! Ela nasceu? Isso é incrível! Ainda mais depois de todo esse tempo.

– Pois, é! Uma das sementes floresceu.

– E você quer que faça um prato de comida com ela? Com o único fruto que você colheu em mais de dez anos?

– Myca. Olhe a sua volta. Veja os animais, os chalés, os mercadores, a cidade, nossas plantações. Olha pra gente. Olha pra nossa filha. Esse é apenas um fruto.

Myca ficou sem reação.

– Não faz essa cara, não. Sorria! Hoje vamos comer Manguejela grelhada com Javafinho frito. Ah, e não esquece de guardar as sementes para Julla. Acho que ela vai gostar.

 


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22 12 2013
Angela

Excelente conto !
Retratando valores que sao preservados quando nos deixamos Ser livres e decidimos viver cada momento que a vida nos oferece.

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