Um artigo meu foi publicado no mês de junho na revista de direito da PUC-Rio, Pilotis Jurídico. Nele eu discuto um tema (de um ponto de vista) pouco comum, que é aceitação social dos games como obras de expressão artística e cultural e a desnecessidade de proibí-los judicialmente. Considero esse debate de extrema importância pois efetivamente propõe uma nova visão social em relação aos jogos eletrônicos. Em vez de criticá-los severamente, devemos entendê-los como a representação cultural e artística de gerações.
Para os interessados: apresentei esse mesmo assunto no evento SB Games 2009 e apresentei um artigo na trilha de cultura. O mesmo está disponível para visualização em pdf.
Os jogos eletrônicos sofrem preconceito há anos pela sociedade. Ainda assim os mesmos indicam um fenômeno crescente e global. Anteriormente vistos apenas como brinquedos para o público infantil, agora se mostram como uma mídia que abrange todas as faixas etárias. No entanto em função de recente decisão judicial[1], que proibiu a comercialização e veiculação dos jogos eletrônicos Counter-Strike e Everquest, nem mesmo os adultos têm acesso. Para justificar a censura destes jogos a sentença de junho de 2007 reproduziu os argumentos de decisão antecedente, que por sua vez proibiu outros seis. Ainda assim, os games (jogos eletrônicos não destinados a reproduzirem “jogos de azar”) têm ganhado cada vez mais relevância na sociedade, seja em função do seu apelo popular ou do seu valor como mídia de entretenimento e expressão cultural.
Apesar de recentes, em comparação com outras mídias, a história dos jogos eletrônicos indica que os mesmos existem desde o final da década de 50. Este cenário põe em evidencia que o processo de adaptação dos jogos eletrônicos às normas jurídicas não é fenômeno recente, mas sim campo de estudo dos contornos da liberdade de expressão e de aplicação dos princípios constitucionais.
A Constituição Federal de 1988 inovou na positivação de vários direitos fundamentais, gerando a construção de uma teoria constitucional que privilegia o papel desempenhado por tais direitos na construção da sociedade. Dentre os direitos fundamentais, destaque pode ser dado à liberdade de expressão, traduzida no direito de manifestação livre de opiniões, idéias e pensamentos. Esse direito, pautado pelos incisos VI, VIII e IX do artigo 5º, e pelo artigo 220 da CF, influencia diretamente em liberdades essenciais para a existência de uma sociedade democrática.
Mais de vinte anos se passaram desde a promulgação da Constituição Federal. Paralelamente ao ordenamento constitucional, os games evoluíram. Com esse desenvolvimento surgiram conflitos entre essas duas realidades. Agora, a classificação indicativa é aplicada em escala nacional e decisões como a proibição de alguns games revelam que o conteúdo do entretenimento digital voltado para crianças não é mais o usual.
Nasce, assim, o debate acerca da relação entre liberdade de expressão e jogos eletrônicos. O mais recente catalisador desta discussão ocorreu em abril de 2008, quando o game Bully foi proibido por um juiz do Rio Grande do Sul, que identificou no jogo violência em ambiente escolar.[2] Essa decisão não ganhou tanta repercussão quanto à proibição previamente citada. Esta, a pedido do Ministério Público Federal, condenou a União a “proibir a distribuição e comercialização de quaisquer livros, encartes, revistas, CD Rom’s, fitas de vídeo-game ou computador do jogo ‘COUNTER-STRIKE’, bem como tomar as medidas necessárias à retirada do mercado desses exemplares”. O mesmo foi determinado para Everquest. Entretanto, essa conclusão suscita diversos problemas e críticas.
Primeiramente é imperativo destacar a importância do trabalho realizado desde 2001 pelo Ministério da Justiça em relação à classificação indicativa de jogos eletrônicos. Esta atuação é crucial, pois games são uma mídia voltada para o entretenimento, e seu conteúdo é destinado a diferentes faixas etárias e públicos-alvos. Dessa forma, incentiva-se um limite razoável, assim como têm sido feito para qualquer tipo de obra audiovisual. Classificar um filme ou jogo como adequado apenas para maiores de 18 anos é admissível, dado que o conteúdo inserido nos mesmos não é direcionado para todas as faixas etárias. Todavia, muitas vezes essas obras exprimem uma manifestação intelectual, cultural ou artística, que vai muito além dos atos violentos explicitados.
A vedação de um jogo eletrônico por um ato judicial priva a sociedade de uma expressão cultural, criada a partir de idéias que, assim como em filmes e romances, são baseadas primordialmente no convívio social de seus desenvolvedores ou por conteúdo criado pelos próprios usuários. Além disso, a interatividade (grande diferencial desta mídia) permite uma abordagem mais crítica e impactante a respeito de inúmeros assuntos. Um de seus grandes destaques é a polêmica série Grand Theft Auto (GTA) que, em sua quarta iteração, promove uma paródia de várias facetas da cultura norte-americana, criticando a política anti-terrorista do governo, seus efeitos para com os imigrantes e o crime organizado. Ao longo de todo o jogo são feitas sátiras de estereótipos sociais que auxiliam o entretenimento do jogador, combinado a produção intelectual. Nota-se que esta proposta poderia ser a mesma de um filme, o qual provavelmente não seria criticado de maneira tão severa.
Indaga-se, portanto, se a sociedade encara os games como manifestação artística.[3] Trata-se de uma mídia recente que ainda passa por um gradual processo de evolução e que, por possuir um grande vínculo comercial, possa vir a dispensar seu conteúdo intelectual em prol de algo que garanta vendas e lucro. Analogamente à indústria cinematográfica norte-americana, há os lançamentos hollywoodianos e aqueles tidos como independentes ou de nicho. A questão é que, apesar de atualmente o número de jogos independentes e artísticos estarem crescendo bastante em quantidade, não foram os mesmos que lançaram as manchetes “Hollywood teme competição dos games”[4] e o recorde de produto de entretenimento com lançamento de maior sucesso da história[5]. Assim, a idéia de jogo eletrônico concebida pela sociedade não é a mesma de um profissional ou jogadores do ramo.
Em segundo plano é válido atentar aos efeitos da desinformação presente nas decisões judiciais. Ao proibir a veiculação de revistas e encartes associados aos jogos, fica incentivada a censura de outros formatos. Além disso, a argumentação oferecida pelos juízos adota como base a visualização de vídeos contendo trechos chaves dos jogos. A narrativa de um jogo pode dar uma nova conotação psicológica a um ato jogável, como também influenciar a classificação indicativa. Na decisão judicial em questão, o fundamento utilizado contra o jogo Counter-Strike é que o mesmo ensinaria táticas de guerrilha urbana para seus usuários e nenhum argumento é oferecido diretamente em relação ao jogo Everquest.
Torna-se crucial então, nesta questão, o princípio constitucional da proporcionalidade. Recepcionado como uma das idéias basilares da Constituição Brasileira, o mesmo revela a importância do equilíbrio e da adequação entre os meios designados por uma forma para atingir o fim da mesma. Segundo Humberto Ávila a proporcionalidade “destina-se a estabelecer limites concreto-individuais à violação de um direito fundamental – a dignidade humana – cujo núcleo é inviolável”[6]. Conforme tal entendimento, a classificação indicativa é a forma mais adequada de regular o acesso da população à mídia dos jogos eletrônicos, posto que haveria “um perfeito equilíbrio entre o fim almejado e o meio empregado”[7]. Assim, permanece inviolada a garantia individual constitucional da liberdade de expressão.
A proibição judicial de jogos eletrônicos, diante do exposto, é uma medida extremada e negativa. A mesma impede o acesso da população a obras já devidamente classificadas pelo Ministério da Justiça, violando o direito à liberdade de expressão. A constante evolução da tecnologia coloca a sociedade em contato com uma mídia que representa a expressão cultural de gerações recentes, potencializada pela inovação da criação de conteúdo pelo próprio usuário. Esse caráter de afinidade global enseja uma enorme amplitude de atuação dos jogos eletrônicos. Ao passo que a devida classificação dos mesmos não se mostra fácil tarefa, permanece a certeza de que impedir acesso aos jogos eletrônicos, além de desproporcional, confronta um direito fundamental.
[2] Conforme publicado em: <http://www.mp.rs.gov.br/noticias/id13845.htm>– Acessado em 26 de Abril de 2009.
[3] BOBANY, Arthur. Video Game Arte. Novas Idéias, 2008
[4] Publicado em: <http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=13636> – Acessado em 26 de Abril de 2009.
[5] Guiness World Records 2009. São Paulo, p. 160, Ediouro, 2008.
[6] AVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, n. 215, p. 151, jan/mar 1999.
[7] SOUZA, Carlos Affonso Pereira de e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. O Princípio da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade: uma abordagem constitucional. Publicado em: <http://www.puc-rio.br/direito/pet_jur/cafpatrz.html> – Acessado em 26 de Abril de 2009
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